Todos sobreviverão?
Cannetti sobre massa e poder
Fernando Rego
In memoriam
In memoriam
Entre os anos de 1921 e
1924, em Frankfurt, um jovem judeu sefaradim presenciou manifestações políticas
de rua, geradas pelos mais variados motivos. Sentiu, também, as consequências
da inflação que a todos atingia de maneira cruel. Massa, inflação, poder e
dinheiro: estes elementos, aparentemente díspares, marcaram-no profundamente e
fizeram o jovem Elias buscar explicações no livro de Freud, Psicologia das Massas,
a que dedicou seu tempo de leitura entre os dias 1º e 10 de agosto de 1925.
Tal leitura produziu no jovem dois efeitos: o primeiro, marcar sua vida espiritual pela independência, e o segundo, por via de consequência, registrar uma profunda rejeição à teoria freudiana. Provavelmente, o primeiro efeito tenha concorrido para que ele ganhasse o Prêmio Nobel de Literatura, em 1981. O segundo, faria com que viesse a público seu livro Massa e Poder, em 1960*.
Esta oposição de Elias
Canetti e Freud deixa claro não ser o processo de criação um ato gratuito. Ele
é sempre dirigido contra alguém ou algo que atormenta ao criador e que, ao
mesmo tempo, serve de gatilho para o processo de criação.
O indivíduo tem que sofrer modificações estruturais para que possa se integrar à massa. Estas modificações geram perguntas e respostas. Elas abrangem, em sua complexidade, um vasto campo de limites interligados, onde filosofia, moral, antropologia e religião se misturam. Desvendar, distinguir e classificar a massa é o passo inicial de Elias Canetti para, em seguida, mostrar a relação existente entre a formação da massa, o poder e a paranóia. Sem dúvida, a efervescência social e cultural dos anos 20 e início dos anos 30, em Viena e na Alemanha, serviu, como confessa o autor, para despertá-lo e atrair sua atenção para o fenômeno.
Um temor persegue o homem e, este, ao tentar dele afastar-se, cria em torno de si as mais diferentes proteções. Algumas não são suficientemente fortes, posto que podem ser rasgadas, dilaceradas, como velhos tecidos. Quando isso ocorre, ele se sente desprotegido e indefeso. Coisas mais resistentes, pela distância que possam estabelecer, devem então afastar este temor. Muros, paredes, grades têm por função colocar, o mais distante possível, o medo de ser abordado por um desconhecido:
- O medo do ladrão não diz respeito apenas às suas intenções de assalto, mas também a um temor de ser tocado por um ataque repentino e inesperado das trevas.
O ser tocado por um desconhecido produz as mais diferentes reações psíquicas. Esta constatação obriga-nos, não só a um constante estado de alerta, como também a mantermos uma distância de segurança em relação ao outro.
Entretanto, esse temor desaparece imerso na massa que, por sua densidade, faz com que um corpo se estreite contra o outro:
- De repente, tudo acontece, como que dentro de um só corpo.
A massa, portanto, tem a capacidade de inverter o pânico de ser tocada. O temor de ser visitado pelo desconhecido é comum a todos os homens, e a capacidade de criar uma distância segura em relação a ele, estabelece as diferenças individuais e sociais entre os indivíduos. A massa torna a todos iguais, mas ao dissolver-se, faz com que o estágio anterior seja retomado: distanciamento e temor.
A massa é dotada de certas características como o impulso de destruição, o sentimento de perseguição, o pânico e, também, a vulnerabilidade à domesticação. Na destruição, a multidão encontra algo que a encanta, o barulho das coisas ao serem destruídas. E os indivíduos que a compõem acreditam-se dotados de uma força que ultrapassa seus próprios limites. As distâncias precisam ser quebradas, a fim de que o sentimento de liberdade se estabeleça:
- A destruição de imagens que representam alguma coisa é a destruição de uma hierarquia que deixou de ser aceita.
Um tipo, enfim, de poder que deve ser destruído,
arrasado de maneira irremediável. Não é desprovido de sentido que, nesses
casos, o uso do fogo é sempre empregado:
- depois de um incêndio, nada volta a ser como era antes.
- depois de um incêndio, nada volta a ser como era antes.
Um prazer bastante remoto acompanha a massa, o prazer pelo crescimento. O estouro dos locais fechados e, consequentemente, dos limites por eles estabelecidos. Ninguém deve ficar de fora, todos devem ser atraídos. Quem já participou de manifestações públicas sabe: mais importante do que os discursos, é a quantidade de ouvintes. Quanto maior for seu número, maior será o entusiasmo dos participantes.
Pode-se dizer que a massa possui sentimento de perseguição, toma como inimigo qualquer coisa que, porventura, oponha-se ao seu crescimento. Contudo, o -maior inimigo não são os ataques vindos do exterior e sim os que partem do seu interior. Este fenômeno pode ser observado em muitas greves, quando algumas vantagens obtidas levam-nas a desintegrar-se. Toda massa traz no seu interior seu próprio e mais temível inimigo:
- Todo indivíduo que pertence a uma determinada massa leva dentro de si um pequeno traidor que quer comer, beber, amar e ser deixado em paz. Enquanto satisfizer estas suas necessidades de maneira paralela e sem fazer muito alarde delas, ele terá permissão para continuar. Porém, assim que ele se fizer notado, começará a ser temido e odiado, fica publicamente notório que deu ouvidos às tentações do inimigo.
O pânico constitui-se em um grande inimigo da massa, ele a dissolve. Ao instalar-se, obriga a cada um afirmar a própria individualidade, na medida em que luta pela própria vida. Todo contato torna-se hostil. Entretanto, o pavor pode ser detido, desde que se faça uso do medo unitário da massa, a exemplo da oração a um Deus comum, afim de que ocorra um milagre.
Unir a multidão é o que buscam as religiões com pretensões universais; as relações entre essas religiões e a massa possuem, todavia, dois aspectos inteiramente distintos que caracterizam os momentos pelas quais passam. No começo, o importante é a conquista e a expansão. Depois, advém a desconfiança em relação à própria multidão e ao seu crescimento.
Necessário então que seja transformada em algo obediente e servil, possuidora de certa densidade. Mas, acima de tudo, deve submeter-se a uma forte direção que traça e determina a meta a ser alcançada. E, quanto mais longe estiver a meta, mais garantias de permanência no comando terá a direção. O princípio de crescimento que caracteriza a massa é substituído pelo da repetição:
- Os fiéis são reunidos em determinados espaços e em determinados momentos, mediante atividades sempre idênticas, eles adquirem um estado semelhante ao da massa, que os impressiona sem, no entanto, chegar a ser perigoso, e ao qual eles se acostumam. O sentimento de sua unidade lhes é ministrado em doses. Da exatidão destas doses depende a subsistência da Igreja.
Este princípio usado pelas igrejas pode ser estendido, com pequenas modificações, a outros setores da sociedade e, em especial, aos partidos políticos. Sem dúvida, a exatidão das doses encontra-se presente em todo processo de manipulação social.
A massa invisível povoa o espírito dos crentes: mortos e santos formam uma multidão, substrato das religiões. O tipo, também importante, de massa invisível, é o da descendência. Esta, na sua infinidade, não é visível para ninguém. Um homem pode conhecer, no máximo, duas ou três gerações. Depois, vem o grande exército dos mortos.
Para a homem moderno, entretanto, este exército não possui grande significado, sendo por isto substituído por outro: o exército dos que ainda não nasceram. É este, em realidade, que se encontra presente em toda discussão a respeito do futuro do planeta, um sentimento profundo em defesa dos não-nascidos, que não devem sofrer as consequências da belicosidade dos vivos.
A continuar.
* CANETTI, Elias. Massa e Poder,
Editora Universidade de Brasília/Melhoramentos.