A dentista
mineira Lilian Queiroz que criou a ONG Oito Vidas: a entidade já conseguiu
famílias adotivas para três mil animais, a maioria deles gatos Gustavo
Stephan / O Globo
RIO - Como
essas são coisas que acontecem sempre, e muito, na sua vida, ela é uma mulher
feliz. Aos 61 anos, já passou da fase de se preocupar com o que os outros
pensam, atitude essencial para quem cuida de bichos e, por conseguinte, sofre
com toda a espécie de preconceitos.
— No mínimo,
acham que você é maluca — diz, caindo na risada; mas logo depois fica séria. —
A nossa sociedade ainda discrimina muito os animais e, por tabela, quem cuida
deles. Uma coisa que ouço com frequência irritante é gente perguntando por que
não cuido de crianças carentes. Cuido também, abro muitas horas no consultório
para atendimento gratuito, mas isso nem vem ao caso. O fato é que os animais
também precisam de alguém que olhe por eles. A minha resposta padrão para essas
pessoas, que tipicamente não fazem nada por ninguém, nem gente nem bicho, é:
“Ah, que bom, você tem uma ONG que cuida de crianças? Eu adoraria conhecer o
seu trabalho!”
Lilian, uma
taurina típica que nasceu e cresceu em Uberlândia, e que sempre conviveu com bichos,
acostumou-se desde cedo a tomar seus próprios rumos. Filha de família
tradicional, educada para ser uma moça prendada, teve muitas aulas de bordado e
de corte e costura até descobrir a paixão pela odontologia.
— Foi
inteiramente acidental — lembra. — Eu sempre adorei arte, tinha uma queda por
desenho, queria fazer escultura. Um dia marquei um encontro com um amigo que
era filho de dentista no consultório do pai dele, onde vi um trabalho de
prótese que o pai estava fazendo. Fiquei apaixonada: aquela microescultura era
um sonho! Ali descobri a minha vocação. Meu pai ficou indignado quando cheguei
em casa dizendo que queria ser dentista, “profissão de sustentar marido” na
opinião dele. Uma moça de bem era professora ou fazia letras, e olhe lá. Bati o
pé. E bati mais forte ainda quando, logo depois de concluir a faculdade, avisei
que vinha para o Rio, para fazer um curso de especialização.
Chegou à
cidade com 23 anos, o curso de especialização começou e acabou e ela foi
ficando. Uberlândia virou uma foto na parede. Passou a dedicar-se
exclusivamente a crianças, desafio que até hoje a seduz. É apaixonada por seus
clientes, e plenamente correspondida. Os poucos adultos de quem trata são
ex-crianças que frequentam seu consultório desde pequenas, como a atriz Debora
Bloch.
— Tive muita
sorte. Comecei a trabalhar num momento em que a odontologia estava se
desenvolvendo a uma velocidade inacreditável, descobrindo a prevenção e
materiais cada vez melhores. Hoje a gente começa a tratar as crianças assim que
nascem seus primeiros dentinhos, quando ainda são bebês. Quando eu era jovem,
era comum que os próprios dentistas dessem balas para as crianças, como prêmio
de bom comportamento. Quem me despertou para a prevenção foi o doutor Olympio
Faissol, com quem fui trabalhar assim que terminei os estudos.
A vida no Rio
não era um mar de rosas. A jovem dentista morria de saudades: a família em
Minas era uma festa permanente, os quatro irmãos sempre rodeados de amigos,
mesas de almoço e jantar com não menos do que dez pessoas, muita cantoria,
muitas serenatas. Felizmente havia a companhia dos bichos, que nunca permitiram
que se sentisse sozinha. Ao contrário, com o passar do tempo eles foram se
tornando presenças cada vez mais constantes — e numerosas — na sua vida. Incapaz
de passar por um animal abandonado e deixá-lo largado, quando viu estava com 15
gatos em casa, e com uma briga e tanto com a vizinhança.
— Eu não
entendo certas pessoas — desabafa. — Elas convivem com marteladas de obra, com
música alta, com helicóptero, com carro de bombeiro passando na rua, com
buzina, com criança chorando, com vizinho brigando. Mas vá um cachorro latir ou
um gato miar! O mundo vem abaixo.
Lilian
comprou um apartamento maior “para diluir os gatos”, mas, no dia da mudança,
viu que estava trocando seis por meia dúzia. Ao descer do carro na porta da
nova casa, esbarrou numa moradora de rua que passava com um carrinho de
supermercado carregando uns 30 gatos. Logo estava cuidando deles e, de quebra,
da moradora de rua, que tinha câncer. Depois disso, o fluxo de animais
abandonados que cruzaram o seu caminho não parou mais. Os mais precisados de
atenção acabavam na sua casa, que funcionava (e funciona até hoje) como lar
temporário, até que novos donos sejam encontrados. O apartamento é amplo,
bonito, com uma luz maravilhosa. A decoração é minimalista, e os estofados
sofrem: quem convive com gatos sabe que eles adoram interferir no ambiente, e
têm um fraco por franjas e rendas.
— A minha mãe
fica muito estressada quando vem ao Rio. Ela me diz: “Você podia ter uma casa
tão bem arrumada!” Eu respondo que, enquanto a maior parte das pessoas optou
por objetos, eu optei por vidas.
Logo ela
descobriu que no Morro do Pasmado, ao lado da sua casa, havia uma quantidade de
gatos abandonados, todos vivendo em péssimas condições. Passou a cuidar deles,
alimentando, recolhendo os filhotes e encaminhando para adoção, castrando os
adultos, dando vermífugos e remédios eventualmente necessários. Trabalho demais
para uma pessoa só: foi uma época de crise no consultório, onde acabava se
atrasando e onde chegou a perder clientes por causa disso.
Era preciso
tomar uma providência. Paciente e determinada, Lilian estudou a situação e
acabou chegando à conclusão de que a melhor forma de ajudar os bichos seria criando
uma ONG. Assim nasceu a Oito Vidas, cujo nome vem das tradicionais sete vidas
dos gatos, mais aquela que ganham quando são adotados.
— Hoje já se
sabe que não adianta recolher os animais a abrigos — diz Lilian, que adotou o
protocolo da Feral Cat Coalition de San Diego, na Califórnia, instituição que
tem tido sucesso notável no trato de animais abandonados. — Gatos vivem em
colônias, e se uma colônia é removida, aquele espaço logo é preenchido por
outros gatos. A primeira reação das pessoas que não sabem do que estão falando,
diante de uma colônia de gatos, é que é preciso levá-los embora. Mas levar para
onde?
Não há lugar
para onde se possa levá-los aqui no Rio. A Suipa está superlotada, e o CCZ
(Centro de Controle de Zoonoses) é um campo de extermínio. “Leva para um
sítio”: outra péssima idéia, porque nas áreas rurais do estado existe uma
quantidade de felinos selvagens que podem ser contaminados por alguma doença
trazida pelos gatos da cidade. A melhor forma de se lidar com os animais abandonados
é controlando a população das colônias, dando alimentação, garantindo que todos
sejam castrados e tratados se ficam doentes. Idealmente, é um trabalho feito em
conjunto com os protetores locais e com o governo, que deve criar unidades
móveis de castração e fazer campanhas educativas junto à população para
prevenir o seu abandono. Aqui no Rio, porém, o governo é inteiramente omisso. A
Secretaria de Proteção e Defesa dos Animais (Sepda) foi criada com boa
intenção, mas virou um cabide de empregos onde sequer é necessário gostar de
bicho para assumir um cargo.
Recentemente,
a Oito Vidas entrou com um pedido de representação junto ao Ministério Público
contra a Sepda, justamente, por causa do apoio da secretaria à idéia sinistra
do Jockey Club de, mais uma vez, confinar os gatos da sua sede num gatil,
espécie de campo de concentração de felinos. Cristina Palmer, vice-presidente
da ONG, é advogada com larga experiência na área dos direitos dos animais.
A Oito Vidas
(oitovidas.org.br), que cuida de cerca de 800 gatos, hoje tem um ambulatório,
por onde passam aqueles recolhidos para castração ou necessitados de cuidados
médicos, e uma pequena equipe de funcionários e voluntários. Tem também um
convênio com a Faculdade Hélio Alonso na área jurídica, graças ao advogado
Marcelo Turrá, que oferece ajuda gratuita a quem enfrenta problemas na área,
como ter algum animal envenenado por vizinho ou sofrer ameaças de despejo por
ter bicho em casa. O governo, para variar, só faz atrapalhar.
— Imagina
qual foi a exigência que me fizeram quando encontrei o depósito onde afinal fiz
o ambulatório? Desratizar a área! Tem cabimento, por veneno num local cheio de
gatos? Além disso, eu só queria saber que rato suicida ia se aventurar por lá.