segunda-feira, 16 de abril de 2018

O OLHO DO CAÇADOR

Há muito tempo salvei este texto no meu PC e somente hoje o li. É um texto da década de noventa se não me engano, mas que mostra a realidade dura e cruel da atualidade e acredito que desde sempre é assim. Porém, nós mulheres podemos mudar não aceitando sermos violentadas nem emocionalmente, nem fisicamente.
A leitura é tão interessante que se torna rápida. Tires suas conclusões.

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O OLHO DO CAÇADOR

Autor: José Angelo Gaiarsa

Médico psicoterapeuta há meio século com mais de 20 livros publicados sobre a especialidade.
Fonte: CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA

Eu gosto de ver as pessoas. Bom dia para vocês. Quero agradecer a deferência, do tempo que me foi concedido e da oportunidade de ter uma audiência obviamente interessada, espero que razoavelmente crítica, porque eu vou expor uma longa história – não se assustem – da agressividade humana. Eu vou contar a história da humanidade como se ela fosse uma só e como se ela estivesse acontecendo – ou tivesse acontecido – numa só linha do começo ao fim. Quando na verdade, quase tudo que vou dizer foram coisas que aconteceram aqui, ali, lá, nesse tempo, naquele tempo, no outro tempo. Não sou historiador, nem iria entrar por esse caminho que nos levaria muito longe.
Devo dizer que tenho uma perspectiva muito pessoal, muito profunda e muito sofrida sobre a agressividade humana coletiva e a minha. Eu sou de formação psicoterápica, tenho 50 anos de psicoterapia, 70 mil horas ouvindo as pessoas reclamarem da vida, casei cinco vezes, me meti em mil encrencas, de forma que eu falo de teoria, de prática, dos outros e de mim. Tive sérios problemas com a agressão que, aliás, é o prato cheio da psicoterapia – vocês sabem muito esquematicamente que os grandes instintos são o sexo e a agressão e o que é que se faz com eles. Esse é o meu embasamento. Gosto muito de biologia, conheço razoavelmente bem a minha área, li muito e um pouco menos de sociologia, meio por alto. De economia, só uns "namorinhos" bem remotos, mas o suficiente pra ver a loucura que ela é e sua agressão contra a humanidade. Ainda hoje, a maioria dos estudos econômicos – nós podemos até começar por aí, porque é muito curto – em primeiro lugar, não leva em conta o trabalho feminino – nem doméstico, nem maternal – que é talvez muito mais da metade de todo trabalho do mundo. Mas ele não figura nas estatísticas financeiras. Em segundo lugar, a economia não considera os custos sociais – o quanto se depreda a natureza e o quão caro isso fica para todos nós, a miséria que a riqueza vai criando. Então eu não sei quanto vale essa economia. E me pergunto se ela não é uma das mais gigantescas agressões que estão sendo cometidas contra todos nós. De economia é tudo o que ei.
Voltemos, então, à pergunta que a meu ver é das mais primordiais: por que é que os homens começaram a caçar?
Aliás, eu devo agradecer os organizadores, que me escolheram um título, que eu por mais que meditasse, eu não acharia um título tão bom para o que eu tenho que dizer: O OLHO DO CAÇADOR. Fiquei fascinado pelo título. Ele encaixa em tudo o que eu penso e em quase tudo o que vou dizer.
Por que é que os homens começaram a caçar?
Não tínhamos necessidade disso. Nossa estrutura digestiva é essencialmente onívora. Podemos comer um milhão de coisas e como outros primatas poderíamos viver bastante vegetarianamente e das mais pequenas coisinhas nojentas: larvas de insetos e outras coisas, que para o nosso gosto civilizado são horripilantes, mas que são altamente nutritivas e contém proteínas de alta qualidade. E, então, ninguém precisava caçar.
O fato é que começamos a caçar. Os primeiros implementos fósseis, as primeiras ferramentas que os homens fizeram, foram lâminas cortantes e pontas pontiagudas. Obviamente para caçar. Há um milhão de anos, mais ou menos. E durante um milhão de anos vivemos em pequenos grupos – os números são dados muito variáveis – eu diria, de 30 a 100 pessoas talvez, mas esse número é um pouco oscilante. De qualquer modo, é um número pequeno. Vivíamos nesses grupos, com alta relação face-a-face. O grupo caçador formava-se pouco a pouco – o que foi a primeira empresa humana e a primeira demonstração explícita de cooperação – porque havia um que tinha muito bons olhos, outro que sabia seguir rastro, o outro que sabia os costume do animal e a verdade é que nós nos tornamos os mais temíveis caçadores do planeta. Nós pomos no bolso qualquer tigre. Há estudos (hoje em dia se mede tudo) que dizem que um tigre sai à caça, em média, umas 10 a 12 vezes antes de pegar uma presa. Nós éramos muito mais eficientes do que um tigre – o bando caçador, não o caçador isolado. Claro que a caçada trouxe por si um forte estímulo no imaginário: o herói, o que arrisca a vida, o que briga com os animais, o que às vezes é caçado em vez de caçar.
Começava-se a criar a saga do herói e ao mesmo tempo o começo do patriarcalismo em supergerme. Os homens é que faziam "o bonito", as mulheres faziam o "arroz com feijão" que, aliás, não era arroz com feijão naquele tempo. Começava a saga do caçador, que sob certos aspectos é bonita, heróica, dramática, aventureira – "adrenalina pura", como se diz hoje da caçada. De outra parte, não esqueçam, durante um milhão de anos nós fomos apurando nossa aptidão caçadora em limites absurdos. Chegamos a caçar mamutes – aqueles monstros! Conseguíamos acabar com eles, embora, às vezes, levasse 15 dias, furando, espetando e cortando antes dele morrer. Eu insisto nessa cena sangrenta, porque ela foi extremamente importante em cultivar nos seres humanos – nos homens, porque as mulheres nunca foram caçadoras – toda habilidade que eles adquiriram no trato com os animais, esperteza, astúcia, emboscada, armadilhas, porque os animais são muito difíceis de pegar. No meu tempo de criança, no quintal tinha um galinheiro, no sábado a gente ia escolher um franguinho pro almoço de domingo, era uma correria pra conseguir pegar um frango dentro do galinheiro. Bicho não é fácil, não. E pra você ser um bom caçador ou um bom bando caçador, você tem de se fazer meio bicho, entendê-los, intuir até. Notem tudo isso, porque foi isso que foi fazendo do homem o maior predador do planeta. O mais astuto, o mais hábil e o mais implacável.
Depois a matança, inerentemente cruel, e depois o despedaçamento. Eu acho que vocês nunca visitaram – e eu não recomendo que visitem – um matadouro. É um espetáculo dantesco. Hoje, pior, porque hoje a caçada é tecnológica. Você nem percebe que está matando o bicho: tudo organizado, em fila, mata, esquarteja, pendura e sai bife. Mas naquele tempo tudo isso era feito com as mãos. E antes da capacidade de se produzir fogo e de conservá-lo – tem uma discussão aí também – há 500 mil anos talvez, era tudo no dente. Imagine vocês comendo carne crua... Era necessária uma mandíbula que não era brincadeira! E de outro jeito, morreriam de fome. Não, não morreriam de fome! Mas de todo jeito, se fossem vegetarianos precisariam da mesma mandíbula. Vejam os gorilas, as ervas que eles comiam eram cheias de fibra.
É bom lembrar que temos antecedentes nada ilustres nos chipanzés. Tanto as proteínas como o DNA do chipanzé, diferem dos nossos de 1,5 a 2%. Nós somos quase chipanzés, os chipanzés são quase humanos. E o fato triste que vem sendo verificado – já faz tempo – é que eles também caçam e também têm uma organização de bandos de caçada. Eles vão cercando a presa e depois a despedaçam na força e nos dentes. É uma cena terrível pra nós.
Vejam, quase todas as religiões têm sacrifícios. Algumas matavam animais. Outras chegaram a matar gente – os astecas são famosos, em grandes festivais astecas eram mortos cinco, seis mil prisioneiros: abriam o peito e tiravam o coração pulsando e ofereciam ao deus para ter certeza de que o sol nasceria no dia seguinte.
Os homens inventaram os mais estranhos pretextos do mundo para se estraçalhar. Esse é um bom exemplo antiquíssimo: matar um monte de gente pro sol nascer. Eu penso que isso não tem nada a ver com o sol, nem com a astronomia. Já estava no caminho da agressão que nós estamos discutindo aqui. O fato é que nos tornamos astutos, espertos, habilíssimos, aprendemos a cooperar – muito mais os homens do que as mulheres. Eu gosto de dizer, em desafio ao movimento feminista, que eu apoio incondicionalmente, mas eu digo: enquanto vocês mulheres não conseguirem se unir, vocês não vão conseguir nada. Justamente os homens têm muito mais aptidão pra trabalhar em grupo. E a origem muito antiga disso é o grupo caçador, em que cada um tinha a sua aptidão e juntando vários indivíduos com especializações – olho, orelha, faro – nós criávamos uma máquina de conquista, de batalha infernal e poderosa. E como eu disse, fomos, indiscutivelmente, os maiores caçadores do planeta.
Toda essa agressividade que nos bandos pequenos da pré-história tinha função, que afinal, alimentava o grupo – embora, já então, havia abusos. Enquanto pegavam um cavalo pra comer, está bom. Mas havia grupos que faziam um corredor de fogo que desembocava em um precipício, onde morriam sete, oito mil cavalos, pra se aproveitar só um pouquinho. O resto apodrecia. Já começava a aparecer algumas coisas feias. Sobrevivência. Eles tinham a melhor das desculpas.
Assim, o homem foi se tornando especialista em caçada, em predação. Estamos inclusive, predando o planeta – recursos naturais que estão sendo esgotados e tudo mais que a gente está cansado de saber. E nem sempre pomos isso no campo da agressão, mas isso é a pior das agressões que podemos fazer. Estamos destruindo a nossa mãe Natureza e a nossa mãe Planeta. Vejam bem, as piores agressões não são muito faladas. Nos detemos muito naquele que cometeu um crime horrível aqui ou ali, mas não levamos em conta, por exemplo, a nossa agressão à natureza é muito ampla, muito intensa. Nós estamos destruindo o que nos sustenta.
Uma antecipação: me surpreendeu, no programa desse seminário, a insistência na questão da visibilidade. Nós vamos compreender isso depois. A verdade, é que antigamente as pessoas não sabiam o que acontecia no mundo. Eu nasci em 1920 e até 40, até 50, o meu mundo era minha família, meus parentes na cidade, meus amigos, os vizinhos e acabou-se. E a gente não sabia mais quase nada de lugar nenhum. Eu nasci em Santo André e, São Bernardo a seis quilômetros, São Caetano a sete, e a gente não tinha a menor idéia do que acontecia lá. Quer dizer, pelo menos no início da desgraça humana, a gente tinha a desculpa da ignorância. Não sabia o que estava acontecendo, não podia avaliar as consequências do que a gente fazia. Embora, que de outra parte – e os pele-vermelhas e as nossas tribos salientaram muito isso – os índios eram muito cuidadosos, eles sabiam fazer a rotação conservadora. Iam mudando. Esgotava aqui, avançavam. Esgotava, avançava. Esgotava, avançava. Mas aqui já estava se refazendo. Eles não faziam uma destruição efetiva da natureza. Era localizada e rotativa.
Acumulamos, então, uma enorme esperteza, engenho, astúcia, implacabilidade, dureza e crueldade. Se fizessem (já deve ter sido feito) um livro com todos os requintes da crueldade humana, faria inveja mortal a satanás. Como foi possível inventar tanta tortura? E algumas vezes, até sem uma pseudofunção. Nós lamentamos, com toda razão, a hecatombe dos judeus, mas é bom não esquecer: morreram 12 milhões de primitivos cristãos, na Roma Antiga, torturados, queimados vivos, comidos por feras. Os negros: 12 milhões de escravos. Deus que me perdoe, mas se me fosse dado escolher – você quer uma câmara de gás ou um navio negreiro? – eu escolheria a câmara de gás. Não tem limites a crueldade humana. E eu insisto, é gratuita. Não tem por quê, nem para quê. Aliás, os filmes hoje, talvez mais os americanos, são de uma brutalidade indescritível.
Eles despedaçam o camarada com a câmera em cima. E se eles fazem isso, é porque tem audiência. Então, o velho caçador cruel está aí em todos nós. Pelo menos na aceitação de filmes de ação violenta.
Vamos continuar. As mulheres inventaram a agricultura – isso é praticamente indiscutível na área dos antropólogos –, foram as primeiras curandeiras, conheciam ervas, e certamente foram elas que começaram a perceber o ciclo reprodutor das plantas e depois começaram a cultivá-las. Vocês não fazem ideia, a queima roupa, da importância desse fato para sustentar um bando de cem caçadores – não só os caçadores, mas o caçador, a mulher, os filhos, os idosos (eles tinham 30 anos) – com outro bando de cem agricultores, a benção que foi no sentido da garantia de alimentação. Outra vez justificando a deusa feminina, que não só era fértil para reproduzir, mas era fértil para a própria natureza, para alimentar as pessoas, isso foi de outro lado uma desgraça, porque foi o começo da civilização. As mulheres, permitiram que existisse a grande cidade. No tempo do caçador não tinha cabimento existir uma cidade com 20 mil habitantes. Vejam, uma grande cidade naquele tempo, a Babilônia, por exemplo, não tinha mais do que 25 mil habitantes. Para nós uma cidadezinha, mas para quem vivia era uma multidão incrível e alimentá-la não era fácil. Aqui, com meus estudos de psicoterapia, com todos os que me ajudaram a esclarecer, verificamos que quando nos reunimos em grande número começamos a produzir coisas numerosas, primeiro além de alimentar muita gente a agricultura permitia lazer, tem o período da semeadura, depois tem a espera do crescimento, depois tem a colheita e recomeça. Este tempo de lazer que o caçador não tinha começou a ser a matriz da cultura. Não tendo o que fazer, nós começamos a inventar coisas simpáticas: rituais, cantorias, objetos e mil outras coisas.
O fato é que as cidades começaram a se tornar centros de riqueza e variedade. Este ponto é muito importante. O que fazíamos com nossa agressividade cruel dos tempos de caçadores quando vivíamos todos juntos? É fácil imaginar. Parece que a mulher era a responsável pela agricultura e o homem pelo pastoreio, por já estarem acostumados com os animais, passaram para o pastoreio depois da caçada. Aqui aconteceram duas coisas bem desagradáveis, a primeira é que começaram a perceber que o macho tinha a ver com a reprodução nos rebanhos, porque até então (e até hoje em alguns povos primitivos) não se ligava a relação sexual, à fecundação e à gravidez. Existiam muitos mitos tentando explicar como uma criança nasce de uma mulher. A relação sexual ocorre aqui e o parto ocorre muito depois. É difícil juntar. Mas com os rebanhos é óbvio que eles começaram a perceber que se não houvesse macho não se tinha a cria. Isto pode ser um dos fatores do patriarcalismo, do predomínio do homem. Um dos fatores porque a história humana não se explica por um fator, ou por dez ou por vinte. Mas procuremos alguns. Primeiro fato foi os homens perceberem que o macho tinha influência sobre na reprodução sim, e ele começo a engrossar a voz, por que antes a mulher era mágica divina, ela gera gratuitamente, magicamente e o homem não tinha nada a ver com isso, mas perceberam que não. Passaram então a uma super valorização, há tribos, por exemplo, que consagram o esperma como água do céu. É ele quem produz o leite da mulher grávida. Essa tribos têm rituais sobre sexo oral, onde o esperma seria uma substância mágica, poderosa. O segundo malefício que veio do pastoreio também se divide em dois. Primeiro, os animais se multiplicam e naquela proporção fatal. Cada geração dá o dobro na seguinte, ou o triplo, ou o quádruplo, conforme a espécie animal. Isto é, a cada ano o rebanho, que era a riqueza do pastor, ampliava-se enormemente. Em segundo lugar, nós, até hoje, só pastoreamos herbívoros, ninguém vai pastorear um bando de leões. Assim, aumentando rapidamente o número de cabeças, e levando em conta que a alimentação vegetal é muito pobre, pois têm 90 a 95% de água. Foi aí que começou a idéia de invasão, começaram a expandir, porque tinham que expandir para não morrer de fome. Não duvido de este tenha sido o primeiro impulso dos famosos arianos, que eram muito guerreiros e que mais tarde organizaram a "invasão natural", por assim dizer. O segundo fato importante que também favoreceu o patriarcalismo foi os homens terem inventado o arado que foi a primeira tecnologia da agricultura. O duro da agricultura é amaciar o chão com pedaços de pau, para ele ficar mais fofo, para poder ser semeado. O trabalho mais brutal da agricultura é esse. Com o arado isso ficou enormemente simplificado. Juntaram animais para puxar e o homem passou a ser o industrial da agricultura. Produzia muito mais, com menos esforço e menos trabalho. Isto lhe deu pé para vencer o poder e cometer as três transgressões básicas do patriarca.
A primeira é achar que na natureza o macho é mais importante do que a fêmea, o que é uma tolice radical, o homem é altamente incidental na reprodução, digamos um por mil é a aplicação dele. Basta um relacionamento de vinte a trinta segundos para que a mulher já tenha dez anos de trabalho feito. Em segundo lugar oprimiram a criança, que passou a ser o "debaixo", "o pequeno", aquele que tem que obedecer sem escolher. O terceiro fato foi o surgimento do poder constituído e a lei. Tudo tem que acontecer sempre do mesmo jeito, para nos sentirmos todos seguros e morrermos de tédio. Porque ganhar segurança é sofrer tédio. Quando as coisas começam a se repetir o próprio cérebro começa a ignorá-las. Qualquer estímulo contínuo ou você fica louco ou aprende a ignorá-lo. A humanidade procurou eternamente esta segurança na repetição, porque assim eu sei tudo como vai acontecer, então não corro riscos, eu sei como será o futuro. E vou me sentir muito seguro do que estou fazendo, que é a maior ilusão e a mais cara das ilusões humanas. A ilusão de segurança quando na verdade o momento seguinte "a Deus pertence". Aqui num momento podemos estar embalados numa conversa e podemos desaparecer agora. Porque há todos os instrumentos necessários para isso prontos para funcionar. Não esqueçam que todos os foguetórios mortíferos estão aí cada vez piores. Estão fazendo câmbio negro de material atômico e todas as outras coisas "lindas" que os seres humanos fazem. Animais racionais de primeira linha. Nunca existiram imbecis maiores no mundo que, tendo tudo nas mãos para transformar a terra num paraíso, fizeram dela um inferno (acho que a bíblia está errada, acho que nós demos lições para satanás e não o contrário).
O que fazer com a agressividade, a astúcia e a esperteza de todos, quando estavam todos muito juntos, ou muitos muito juntos? Perigoso. Primeiro surgiu a idéia de uma autoridade mais forte do que a possibilidade de todo mundo brigando com todo mundo. Esta foi uma das raízes mais profundas do autoritarismo. É melhor um tirano do que todo mundo se matando entre si, ou perseguindo um ao outro, ou roubando um do outro.
Em segundo lugar criava-se a autoridade central. E como é que se aproveitou a agressividade do primitivo na organização social civilizada? A força da agressão primitiva se dividiu, a meu ver, tomou três direções para absorver a agressividade do caçador. A primeira foi a guerra. Onde periodicamente se faz uma matança coletiva. O que é a pior maldição da humanidade. Só nós e as formigas fazemos guerra. Os chimpanzés defendem fronteiras, mas não fazem guerra. Não podemos esquecer que os primeiros instrumentos fósseis foram cortes de pontas, e que a nossa primeira atividade predatória agressiva violenta foi a caçada, matar seres vivos. A segunda derivação foi a pirâmide de poder, porque o de cima pode invariavelmente pisar no debaixo e o debaixo não pode pisar no de cima. Então toda agressão desce a escala desde o "chefão" até a base, que era constituída, e eu não sei se ainda não é, pelo soldado raso, pelo operário, pelo camponês, pela mulher e pela criança. Esta era a base da pirâmide que aguentava todo repuxo lá de cima. Eu insisto muito nisso, o quanto a pirâmide organizou a agressão humana e precisa da mesma para funcionar. Repito, o de cima tem todo o direito de desabafar em cima do debaixo e o debaixo nem pensar em desabafar contra.
Vejam quanta raiva vai descendo por aí. O segundo fator que torna a pirâmide um excelente meio de controlar a agressão é o fato de se pisar no debaixo por que quer subir, porque em cima é muito melhor, então não se hesita em pisar no debaixo. Estes são os dois fatores de organização social que passaram a absolver a agressividade humana. Posso agredir o debaixo, tenho que me submeter ao de cima, mas eu vou fazer o possível e o impossível para subir. Isto vale desde os egípcios até hoje em qualquer empresa existente. Esta pirâmide alcançou atualmente o limite do limite do absurdo, onde talvez 5% da humanidade é rica demais e 15% apenas sobrevivam e o resto é pobre demais. Ela é mortífera. Gera um ressentimento ou uma passividade monstruosa. Ou o indivíduo desiste de brigar e "enche a cara", que é a única saída como diz Chico Buarque, ou ele começa a dar tiros, a achar ruim, ou espancar a mulher, ou os filhos. Então, a primeira derivação da agressividade humana e todo poderio militar. A segunda derivação da agressividade humana, a própria pirâmide com toda a agressividade organizada, não criando caos (eu sei quem eu posso agredir e quem não posso agredir, o que é melhor do que agredir a torto e a direito sem rumo).
A terceira derivação, não se surpreendam, mas é a minha favorita, não por ser bonita, mas por ser não falada e extremamente importante, que é a sagrada família. O que é que a sagrada família tem a ver com a agressividade humana? Tudo. A maior charada com que eu briguei na vida, não esqueçam que 50 anos de psicoterapia quer dizer 50 anos ouvindo queixas sobre a família. Eu fiquei surpreso ao constatar que a família é o único lugar do mundo onde está autorizada a agressão. Porque em família você pode fazer o diabo e ninguém diz nada. Marido e mulher podem se estraçalhar anos a fio. Tanto os que se estraçalham de pancadas como os que se estraçalham com o olhar, frases e tudo mais. É bom não se esquecer a micro-agressão que está presente praticamente em qualquer relação humana. Que aparece disfarçada, pela fofoca, que é uma tremenda agressão coletiva para manter o status quo. Contra quem você faz fofoca? Contra quem no grupo procede de forma não tida como normal ou saudável, você tende a excluir, e nisso as pessoas que na frente fazem salamaleque, por traz todo mundo sabe, "cortam" muito bem "a casaca", o que tem consequências até econômicas para quem foi "fofocado". Isso é outra derivação da agressão, a gente faz de conta que é "bonzinho" e machuca quanto pode por baixo, indiretamente. É bom não esquecer esta agressão coletiva.
Os piores bandidos não são os bandidos, com toda certeza. O que aliás levanta um problema gravíssimo sobre o evolucionismo. Convicção minha, de cada dez poderosos do mundo, ao longo de toda a história, oito são as piores pessoas que você pode imaginar, são os mais inescrupulosos, os mais aproveitadores, os mais espertos e os mais cruéis. Eu lembro, panoramicamente: Hitler, Mussolini, Mao Tsé Tung e Stálin (não sei se quem falhou foi o socialismo ou se a desgraça da Russia não foi Stálin). Estes personagens foram monstros inacreditáveis, o que não quer dizer que os daqui sejam muito melhores, não. Eles são melhores organizados e melhor disfarçados, também aprenderam um pouco a não chocar demais o público. Sabem da guerra do Golfo? Um maravilhoso vídeo game, só que morreram cem mil iraquianos. Isso não aparece. Vamos à lei. Por que é que a família é um enorme absorvedor de agressão? Porque em casa você pode fazer e dizer o que fora de casa você nunca pode. Para sua mulher você diz e ela para você, você faz com seus filhos, e estas coisas estão, hoje em dia começando a aparecer (coisa que eu já sabia e falava e as pessoas me achavam "não sei quê").
Já está claro hoje em dia que o lar é o lugar mais perigoso do mundo. Em nenhum outro lugar ocorrem tantas agressões graves, tão sérias e tão impunes, onde o agressor tem a consciência de estar fazendo o seu dever. A criança esmagada vai ficar "boazinha", ela está sendo preparada para obedecer o poderoso e entrar na pirâmide do poder porque a mini-pirâmide familiar já a treinou muito bem para isso. Eu tenho dados da Unicef, do último ano, que mostram que ocorreram oitenta mil mortes de crianças na América do Sul por maus tratos familiares. Imaginem as outras, as que não morreram. Segundo pesquisa da USP, ocorreram dois milhões de assédios e abusos sexuais em família em 1999. Somente 2% foram denunciados, por quê? Porque a família é a maior hipocrisia do mundo de vários modos. Segurem-se um pouco. Eu desenvolvi técnicas de acordar as pessoas que são um pouco bruscas, às vezes eu banco o despertador e as pessoas nem sempre gostam. Notem o seguinte, esta questão sexual está muito ligada a agressão, eu digo que a família é a maior soma de mentiras coletivas que existe. A primeira da família, a mais fundamental: "mãe não tem xoxota". Para que é que tem família, por que se casa? "Sabe Deus". Vai ver que é para criar cegonha. Ainda hoje quase ninguém é capaz de imaginar com realismo papai e mamãe transando, não cabe. E o que acontece são os dois milhões de assédios sexuais, 2% de denúncia, porque a criança está completamente atarantada diante dos fatos. Porque o fato anterior você não disse, o que pode o que não pode, se deve ou se não deve. Se você vir duas criança brigando, é natural, mas se você vir duas crianças brincando de médico ou se agradando, nossa! Ainda hoje de cada cinco pessoas quatro ficam escandalizadas. Uma tremenda repressão do prazer que tem muito a ver com a agressividade em outro ângulo.
Mas voltemos um pouco, e vamos ao meu penúltimo livro "Briga de Casal". Ah! briga de casal, casamento é assim no começo tudo bonitinho depois o casal se tortura por vinte, trinta anos em seguida. De cada cem casamentos, a minha classificação é assim, talvez, 5% sejam quase bons, 20% são toleráveis, o resto é péssimo. Os maus sentimentos que correm em família são uma coisa espantosa quando você olha para eles. O rancor matrimonial é o pior sentimento que eu já vi no mundo. É pior do que um torturador da Guestapo, porque às vezes dura vinte anos a tortura, implacável, contínua. Se vocês somarem todo sofrimento subjetivo, profundo que se sente na família, se vocês multiplicarem o sofrimento de uma família pelo número de famílias no mundo, dá um sofrimento muito maior do que o das guerras. E é neste sentido que eu digo que a família acabou sendo usada, vamos dizer assim, porque também a história da família não é uma só, ela não era como é hoje em velhos tempos. Eu estou falando um pouco mais da família de hoje embora as de outras épocas, neste ponto, também eram semelhantes. Em Roma o direito do pai podia matar o filho sem explicar nada para ninguém, por gosto, por raiva, pelo que fosse ou até por capricho se lhe desse "na cabeça". Um autoritarismo absoluto dentro de casa, e eu insisto era necessário, porque sem essa educação da submissão a pirâmide de poder não subsistiria. Daqui a pouco eu volto a este assunto, ampliando um pouco mais. Eu quero liquidar a briga de casal que é tida como natural e na verdade, todo mundo sabe que é uma desgraça, tendo como conseqüência moléstias crônicas da segunda fase da vida, que a medicina tempera mas não corrige. Eu garanto como médico, como terapeuta, como leitor de mil histórias que quatro quintos das moléstias psicossomáticas dependem do casamento. De sentimentos reprimidos, primariamente de ódio. Jatene, nosso querido ministro, já disse isso na televisão com todas as letras: hipertensão que é a doença da época é talvez o que mais mata nos EUA e está começando a ganhar terreno em todos os países. A hipertensão, dizia Jatene, e eu assino embaixo com todo prazer, é a agressão, é a raiva reprimida. Eu queria esganar, eu queria bater ou eu queria ir embora, mas não posso esganar, não posso bater, não posso ir embora. Então eu explodo. A pressão é o meu animal esperneando, dizendo – Vai embora! Ou, se não, dizendo – Mata! Mas eu nem mato, nem vou embora e a pressão fica lá em cima. E no fundo ela me mata. Vejam vocês quantas derivações de agressão que eu suponho estejam surpreendendo muitas pessoas aqui, estas correlações que a gente não fala: agressão é a guerra, agressão é o bandido, agressão é o toxicômano, mas a gente não olha para a agressão do cotidiano que estamos absorvendo.
Agora chegando um pouco ao século XX, porque eu acho que já podemos fazer isso. Qual é a situação hoje? Século XX, o século das maiores transformações tecnológicas do mundo, deveras uma maravilha. Eu tive a sorte de ter vivido praticamente todo o século XX, é uma historia a ser contada, é espantosa, é bonita, é odiosa, é horrível, é linda. Mas foi no século XX da tecnologia que ocorreram mais de cem conflitos armados, em média um por ano. O melhor negócio do mundo qual é? Armas, se você quer ficar rico, invista em armas para matar o próximo que você vai direto para a Nasa, para a KGB. Hoje eu tenho certeza, eu não tenho documentação e seria absurdo se os interessados a permitissem, eu quase asseguro a vocês que metade a dois terços das guerras que aconteceram e estão acontecendo são provocadas e pagas pelos produtores de armas. Isto não é agressão, estas pessoas são respeitadíssimas, têm fortunas gigantescas, aliás, eu não garanto, mas eu não sei se boa parte do que Hitler fez de bom para os alemães não dependeu das industrias bélicas que ele favoreceu extraordinariamente. Então tinha trabalho para todos, todos eram bem pagos e depois queimou tudo isso do jeito que nós sabemos.
E a visibilidade? Me surpreendeu quando eu li o programa tanto visível e imaginário. Hoje eu sei muito bem porquê. Vocês não nasceram em 1920, para saber que a televisão marcou o meio do século, o começo de uma gigantesca transformação social, porque nós começamos a ampliar o contexto, não era mais minha casa, meu vizinho, meu amigo, eu começava a ver a China, a Turquia – Olha como trajam! Olha como falam! Olha que dança, olha que música! Eu comecei a ver que eu era cidadão de um mundo muito grande e não só daquele mundinho de dois quilômetros por dois quilômetros. O mundo se ampliou absurdamente para as pessoas que estão em casa, vejam bem, que é o lado mais bonito talvez do século XX. Somos hoje cidadãos do mundo e não paulistanos e nem sequer brasileiros. Somos cidadãos do mundo.
Agora o visual. O único lugar que tinha figurinha bonita era a capa das duas revistas que haviam em São Paulo ou da folhinha do armazém, ou do santinho da igreja e não tinha mais figura colorida nenhuma. O jornal tinha duas ou três imagens em preto e branco, meio borradas, horríveis. As revistas eram 95% em branco e preto, com uma fotografia que não era lá essas coisas. Eu tinha fome, eu sou um voyeur nato, os olhos para mim são tudo. Eu morria de sede, não sabia porquê. Hoje para qualquer lugar que você olhe, para qualquer página que você vira, você tem uma figura maravilhosa. Uma das grandes mudanças do século XX é passar do predomínio verbal para o predomínio visual. É isso que está ascendendo a agressão no mundo inteiro, porque no meu tempo de criança eu não tinha a menor ideia de nada do que eu disse para vocês até agora. Ninguém sabia nada a não ser dentro daquele quadradinho. Hoje você tem a visão, eu estou lá eu vejo como é lá. Hoje a gente vê a qualquer hora em qualquer lugar a fantástica injustiça que existe no mundo. Eu vou repetir a fórmula, porque ela está sendo muito usada: cada vez menos gente com mais dinheiro e cada vez mais gente passando fome. Agora isso se tornando sabido, visível mostrado e insistido, eu acho que está ascendendo a agressividade humana a níveis que talvez ela jamais tenha tido. E o pior é que eu vou assinar embaixo com toda razão do mundo, porque esta injustiça é uma monstruosidade. Alguma coisa precisa ser feita, seja lá o que for, como já está acontecendo vira e mexe alguém que é preso por todo este contexto que eu estou falando e que talvez não tenha consciência dele, de repente sai alguém dando tiro de metralhadora dentro de um cinema, até entre nós que somos um povo pacífico por definição. Não sei se pacíficos ou bobos, às vezes, aguentamos tudo, somos muito "bonzinhos". Nos EUA já é moda, até criança já aprendeu, vai de revólver na escola e mata três ou quatro. Eu acho que isso é puro desespero, assim – Eu odeio tudo o que está a minha volta, mas quem é o desgraçado, o culpado? Ninguém sabe, porque os principais culpados vivem em cada castelo que deixa os medievais no chinelo, cercados de muralhas uma metralhadora em cada canto do terreno, meia dúzia de pitbulls. Eu não sei se eles são poderosos ou prisioneiros de uma cadeia de altíssima segurança, eles não podem nem pôr a cara para fora. Sai de carro blindado, helicóptero em cima, três escoltas e muita gente acha que eles são felizes.
Aí está minha gente, mais ou menos o que eu queria dizer, mostrar todas as raízes da agressividade que é infinitamente mais envenenada, coletiva e abusiva do que os jornais permitem supor e às vezes até, os livros mais eruditos, onde a família é sagrada, família é boa a qualquer preço. Ninguém percebe, por exemplo, só para assinalar mais uma loucura da família, porque não tem outro nome, uma coitadinha de treze anos na favela, analfabeta, meio débil mental. Engravidou por acaso, mas com o neném no colo todos dizem que ela é mãe, ela sabe o que faz, as mães sempre sabem o que fazem. Os pais encaminham os filhos. Eu queria saber quem encaminhou os pais? Em segundo lugar, eu quero saber no Brasil, e não é só no Brasil não, em que metade dos pais são alcoólatras crônicos, mas pai é pai, pai sabe o que faz, pai cuida de família. E as pessoas repetem isso. Estão vendo uma barbaridade e estão dizendo que é uma beleza. Eu quase digo que nós temos o destino que nós merecemos, pela nossa cegueira, pela falta de coragem de autodefesa, porque a melhor força da agressividade é que eu me defenda, esta é legitima eu acho. É isso aí minha gente. Desculpem o susto.